“Um campo diferente para o campesinato brasileiro”: O MPA e o desafio de alimentar milhões
Famílias camponesas organizadas no MPA podem oferecer experiências sobre como formular novos programas e políticas
Por Denise De Sordi
Desde 2020 a fome voltou à cena pública em um processo de discussões demarcado por famílias de trabalhadores revirando caçambas de lixo em busca de restos de comida, de ossos e por um contingente cada vez maior de trabalhadores vivendo nas ruas. Porém, este tem sido um período configurado também por ações a nível nacional organizadas pela união dos movimentos sociais do campo e da cidade para a distribuição de cifras expressivas de alimentos, asseguraram a sobrevivência de milhões de pessoas e, principalmente entre 2019 e 2022, a continuidade da democracia no país.
É certo que a agenda de possíveis soluções para a questão social da fome sempre foi um fator de mobilização constante no período da Nova República brasileira. Na década de 1990 essa pauta cumpriu o papel de aglutinar projetos políticos distintos e de mobilizar diferentes atores sociais que disputaram caminhos para as reformas estruturais previstas ainda em 1988, em nossa Constituição Cidadã. i
Basta lembrarmos que até meados daquela década, mobilizações da sociedade civil, a exemplo da Campanha da Ação da Cidadania Contra a Miséria e pela Vida (1992-1993), ou a entrega do primeiro plano de Política Nacional de Segurança Alimentar (1991) pelo Governo Paralelo, pressionavam por soluções que integrassem o campo e a cidade, e por soluções imediatas associadas à mudanças estruturais.
Nos pontos de “Idéias para o Plano contra a Fome”, elencados por Betinho no início dos anos de 1990, “fome e democratização da terra” figuram como “a forma mais direta e eficaz de combate à fome e à miséria”. Na Introdução do plano de Segurança Alimentar do Governo Paralelo, argumentava-se que o combate à desnutrição e à fome precisaria considerar uma “estreita articulação [...] com os aspectos fundamentais para os objetivos da Segurança Alimentar, especialmente a Política de Emprego e Salários, a Política Agrícola e o Plano Nacional de Reforma Agrária [...]”.ii
Em confluência com os diversos movimentos sociais e partidos políticos que se organizavam em torno do tema da “fome”, forjou-se assim um campo de oposição e negociação que buscou enfrentar uma dura agenda de reformas macroeconômicas que organizaram, desde então, o ritmo para a produção e a reprodução da pobreza no país. Parte desta agitação popular passou por um processo de arrefecimento entre 1995 e 2002, com a desativação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea),iii e suas propostas só reemergiriam no âmbito institucional do governo em 2003, com a proposta do Fome Zero. Este último, com um forte componente da Reforma Agrária, foi posto na dimensão de projeto com ações setoriais, dando espaço aos programas de renda mínima dos anos 2000.
Foi também em meados dos anos de 1990, sob a pressão dessa agenda de reformas e a reivindicação do acesso à terra previsto na Constituição, que os movimentos do campo se tornaram agentes fundamentais da arena pública e das discussões relacionadas à fome. Suas mobilizações passaram a receber mais atenção, a violência no campo se tornou uma pauta, e os movimentos passaram a reformular suas estratégias de economia solidária em diálogos que se davam com um arco de atores e organizações que incluía desde a Igreja Católica até partidos políticos.
Os instrumentos historicamente consolidados de organização dos trabalhadores no campo, tal como os sindicatos, deixaram de oferecer respostas suficientes e os trabalhadores passaram a se organizar em grupos dos quais derivaram movimentos sociais rurais, dentre eles, o Movimento dos Pequenos Agricultores, o MPA, que surgiu a partir de pequenos núcleos de trabalhadores organizados desde o Sul do país. Esta foi a forma encontrada para disputar não só a existência e reconhecimento das famílias campesinas, mas as próprias formas de se produzir alimentos no país.
Isabel Ramalho, coordenadora do MPA em Rondônia, está no Movimento desde sua fundação e sua própria experiência de construção do MPA ajuda a desvelar esse processo histórico. Ramalho “já fazia militância no sindicato rural, nesses sindicatos de trabalhadores rurais, na região Norte do país, mais precisamente em Rondônia, e foi a partir de problemas e dificuldades, lacunas deixadas pelo movimento sindical rural que surge o MPA e nesse surgir do MPA eu fiz a minha migração, eu saí da estrutura sindical e iniciei minha militância no MPA”. iv
O MPA atua em uma questão central para o desenvolvimento do país e o combate à fome, e que parece ter sido compreendida muito antes pelos movimentos sociais do campo do que pelos governos: não há produção de alimentos insuficientes no Brasil, há um bloqueio de subsídios e de ações, derivada de um suposto conflito de interesses com o agronegócio, que impede que a produção das famílias de pequenos agricultores seja fortalecida com subsídios, escoada e consumida por todos nós.
Os campesinos que se organizam no MPA, encontram no movimento a oportunidade de realizar a transição agroecológica de sua produção e ter à sua disposição a rede de escoamento regional e/ou nacional articulada pelo movimento. Estima-se que cada família organizada no movimento produz em média seis toneladas de alimentos por ano. Esta produção é voltada para a subsistência, para o mercado e comércio e para ações de doações nas campanhas de combate à fome em escala nacional que são organizadas pelo movimento.
Basicamente, o MPA pratica uma tecnologia social que combate a pobreza de ponta a ponta, do campo à cidade. Cada alimento adquirido de famílias de pequenos agricultores significa não só um alimento produzido sem venenos, contribuindo para a economia nos gastos com saúde pública, mas a queda do endividamento das famílias que advém da compra continuada de agrotóxicos, e a continuidade de práticas de plantio que tem como princípio a preservação ambiental e da cultura alimentar brasileira. Ou seja, cada alimento adquirido de uma família camponesa representa um universo de princípios coletivos benéficos à sociedade e a fixação sustentável daquela família no campo.
A existência do MPA indica um processo que busca “a possibilidade da gente sonhar, vislumbrar e se desafiar a ajudar a construir um campo diferente para o campesinato brasileiro”.v As famílias campesinas, popularmente conhecidas pela população urbana como pequenos agricultores são os que: “Na definição do MPA [...] [o pequeno agricultor é] aquele que toca a sua vida, a sua propriedade ou a terra onde ele trabalha, com o trabalho da sua própria família, então esses são os que consideramos o pequeno produtor. Ele pode ser o proprietário da terra, mas nem sempre é uma condição, tem muito pequeno produtor camponês que não tem a propriedade da terra e que trabalha ainda como meeiro ou como arrendatário. O que ele usa para fazer a sua produção é a força de trabalho sua, e de sua própria família. Então isso, para nós, é o critério básico para definir se a família é pequena agricultora, ou não”.
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