O acesso à “Comida de verdade” e o combate à pobreza do campo à cidade
‘Comida de verdade’ expressa um processo que inclui, não só a necessidade de construção de mecanismos de Segurança Alimentar, mas a produção de alimentos ‘de verdade’
Por Denise De Sordi
O ciclo de empobrecimento aberto pelo desmanche das políticas e programas sociais de combate à fome e à pobreza, agravado pela pandemia, apresentou, além de efeitos funestos, a necessidade de discutirmos soluções de longo prazo para evitar a repetição e o aprofundamento do quadro de fome que se espalhou pelo país nos últimos anos. Enquanto condição vivida, a fome é a expressão mais brutal da pobreza. Sua ocorrência indica que ações anteriores que poderiam ter sido tomadas para não se chegar a esse extremo, falharam ou foram ignoradas pelo Estado.
Entre filas de garimpo dos ossos, revirar de lixeiras, pedidos nos semáforos e nas ruas, trabalhadores em condição de extrema pobreza denunciam estarem “cheios de fome”. Famílias de campesinos enfrentam conflitos pela terra, pela água, o endividamento e a ausência de subsídios para produzir, escoar e sobreviver enquanto anunciam que “queremos ajudar o Brasil a superar a fome, mas, para isso, não podemos passar fome”, tal como disse um camponês do Movimento dos Pequenos Agricultores, o MPA. Está evidente que a comida e, principalmente, a “comida de verdade” não têm chegado a todos nós, seja nas cidades, ou no campo.
A reativação do Programa Bolsa Família (PBF), do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e a retomada dos investimentos no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e nos programas ligados ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), além de ações concretas e efetivas, vão, progressivamente minorando a condição de empobrecimento e nos permitem colocar em perspectiva a experiência do desmanche desses programas e da falta que fizeram à sociedade em período recente.
Entretanto, o cenário de 2023 difere-se daquele do início dos anos 2000, ou mesmo do de meados de 1990, períodos nos quais grande parte desses programas e políticas foram formulados. Os efeitos críticos da pandemia de Covid-19 exacerbaram o esgotamento de uma lógica política e econômica que pode ou não garantir – porque está ao sabor do vento das escolhas e interesses políticos e econômicos de diferentes governos – Direitos Sociais, dentre eles o Direito à Alimentação. Em 2023, questões sociais estruturantes estão mais latentes, o nexo do discurso da meritocracia tem cada vez menos sentido quando confrontado pela realidade, a crise climática escala rapidamente, e a maioria da população sequer consegue ter acesso a alimentos, ultraprocessados ou “de verdade”.
Assim como a criação das políticas e programas mencionados se deu a partir de iniciativas populares que foram interpretadas e institucionalizadas pelo Estado, é preciso ressaltar que atualmente, também há saídas do tipo que já se mostram efetivas em escala nacional, ainda que não de forma institucionalizada. A emergência de uma conjuntura de empobrecimento e fome nos últimos anos colocou em evidência, em meio a ausência do Estado, uma série de iniciativas coletivas, periféricas e solidárias que popularizaram, com suas práticas, os conceitos de Segurança Alimentar e de Soberania Alimentar, conferindo materialidade à ideia, muitas vezes abstrata, do acesso à “comida de verdade” como forma de se combater à fome.
A novidade que se apresenta nesse período histórico é justamente a união entre trabalhadores do campo e da cidade para o desenvolvimento de ações que criaram formas efetivas de combate à pobreza de ponta a ponta, ou seja, do campo à cidade por meio da distribuição de “comida de verdade”. Das Cozinhas Solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) às ações de distribuição massiva de alimentos pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), milhões de trabalhadores em condição de pobreza receberam gratuitamente alimentos e refeições saudáveis, sem veneno e biologicamente nutritivas.
O ato de distribuir alimentos se configurou enquanto ação política e coletiva. Impulsionou um novo ciclo de debates que propõe novas possibilidades e mecanismos de combate à pobreza, de forma interconectada aos conceitos de Segurança Alimentar e Soberania Alimentar, a distribuição de “comida de verdade” é somente a ponta mais visível desse processo. A ideia primeira é que a pobreza precede a fome. Combater esta última implica percorrer um caminho de ponta a ponta: que começa com os campesinos, na produção, passa pela disponibilidade, acesso e comércio dos alimentos e chega às famílias de trabalhadores nas cidades.
É importante ressaltar que a ideia de uma “comida de verdade” tem muitas vezes aparecido como uma forma simplificada de se falar sobre Soberania Alimentar e Segurança Alimentar, desconsiderando os circuitos de produção, de acesso e socioculturais que se apresentam por meio do processo de acesso e de escolha dos alimentos. “Comida de verdade” expressa um processo que inclui, não só a necessidade de construção de mecanismos de Segurança Alimentar, mas a produção de alimentos “de verdade”, ou seja, produzidos sem veneno e por meio de práticas que respeitam direitos dos trabalhadores, que promovem a preservação e a revitalização do meio ambiente, e desenvolvem relações justas de produção e de comércio.
Por isso a ideia de “comida de verdade” assume importância quando falamos em ações e tecnologias de combate à fome e não pode ser esvaziada de seu significado. Esse é um debate que só pode funcionar – tal como a crise social dos últimos anos e o retorno do país ao Mapa da Fome mostraram – de forma articulada e interconectada à Segurança e à Soberania Alimentar. Assim, é importante lembrar que o conceito de Soberania Alimentar emergiu em meados dos anos de 1990, pelas mãos de camponeses e povos indígenas de todo o mundo, preocupados com a progressiva eliminação do direito à terra e ao território e com as mudanças nos modos de vida da população gerada pelo avanço da produção alimentar em larga escala, transnacional e orientada pela moral econômica neoliberal.
Em resumo, a formulação do conceito de Soberania Alimentar é um dos pontos culminantes de um processo histórico de organização popular pelo direito de existir, de se alimentar bem e de se viver com dignidade. O conceito define-se como o direito de cada nação a manter e desenvolver, de forma autônoma, sua capacidade de produzir alimentos, respeitando a diversidade produtiva e cultural, o que se produz e para quem se produz.
No Brasil, o conceito de Soberania Alimentar ganhou relevo durante a crise social que se agravou com a pandemia. O conceito se apresentou ao público urbano na prática, por meio da política solidária de famílias de pequenos agricultores, a exemplo daquelas organizadas no MPA, que, entre 2020 e 2022, com a campanha nacional “Mutirão contra a Fome”, distribuíram 5 milhões de quilos de alimentos, somados ao abastecimento de parte das Cozinhas Solidárias do MTST.
O ato de distribuição massiva de alimentos em bairros populares, colocando em contato direto produtores e consumidores, fruto do avanço da produção agroecológica no campo, – sem veneno, integrada à pauta da biodiversidade, dos direitos trabalhistas e da preservação ambiental – contribuiu para colocar em xeque o atual modelo agroalimentar, baseado no monocultivo, descolado da promoção da saúde pública e baseado no uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos que geram contaminação do solo e das águas. Mas, principalmente, levantou a questão de até que ponto é possível combater efetivamente a pobreza e a fome, sem considerar o processo de ponta a ponta, ou seja, do campo à cidade, priorizando o acesso de parcela expressiva da população à “comida de verdade”.
A questão assim se apresenta, pois a “comida de verdade”, além de percorrer caminhos curtos para chegar às mesas, ser livre de venenos, promover a saúde pública e a preservação ambiental, ao encontrar formas de escoamento em larga escala, também contribui para a fixação de famílias campesinas no campo, gerando trabalho e renda para uma parcela populacional que figura como uma das mais afetadas pela insegurança alimentar. É um processo de investimento com retorno dobrado, quanto mais se integra o combate às dimensões da pobreza à lógica produtiva, mais efetivo, com maior participação social e de longo prazo este se torna.
Como revelado pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), mais de 60% dos domicílios em áreas rurais apresentaram condição de insegurança alimentar e 21,8% de famílias de pequenos agricultores passavam fome. Este é um problema que foi agravado pela pandemia, mas que encontra seus motivos no modelo de distribuição de terras, acesso à água e sementes, e no esgotamento dos programas e subsídios voltados à agricultura familiar.
O acesso em larga escala à “comida de verdade”, indicando aquela produzida por pequenos produtores, com base na “transição agroecológica e dos sistemas agroalimentares”, que estão “no centro do enfrentamento à pobreza, à fome e às mudanças climáticas”, tal como argumentam os campesinos do MPA na proposta do Programa de Alimentação Saudável (PAS), é parte fundamental da Soberania Alimentar articulada a Segurança Alimentar. Esta última alerta para a necessidade de subsídios para que a “comida de verdade” chegue às cidades por meio de feiras, mercados populares de alimentos, Cozinhas Solidárias e a ampliação de políticas públicas que apoiem a produção, o escoamento e o consumo.
Pensar o combate à pobreza e à fome, em um novo ciclo de políticas e programas sociais, implica reconectar os problemas de ponta a ponta, desde a produção até os espaços de disponibilização dos alimentos para os consumidores, considerando que, em 2023, trabalho e renda encontram-se em dimensões apartadas, assim como o acesso à alimentação saudável e à “comida de verdade”.